Em uma indústria que busca previsibilidade a todo custo, o gênero terror/horror vem se destacando por sua eficiência mercadológica. A chegada do Halloween, que serve como pretexto para muitos lançamentos, não esconde o fato de que vivemos uma onda comercial de monstros, demônios e zumbis tanto nos cinemas e como no streaming. Mas o que está por de trás desse fenômeno?
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O PRAZER DE SENTIR MEDO
Começamos com uma pergunta intrigante.
O que nos atrai tanto em sentir medo?
Os fundamentos estão na psique humana, existem uma série de estudos e publicações a respeito. Em uma análise profunda sobre o tema de como o terror nos fascina, o livro Why Horror Seduces (Mathias Clasen) explora os atrativos e funções do gênero, baseando-se em descobertas a partir da neurociência. Em outras palavras, o entretenimento que nos faz sentir medo ativa mecanismos neurobiológicos primitivos e profundamente preservados. A exposição a atos aterrorizantes, ou mesmo a antecipação desses atos, pode nos estimular tanto mental quanto fisicamente de maneiras opostas: negativamente (na forma de medo ou ansiedade) ou positivamente (na forma de excitação ou alegria).
Somos atraídos pelo terror porque temos uma tendência adaptativa de encontrar prazer no faz de conta, que nos permite vivenciar emoções negativas com alta intensidade dentro de um contexto seguro. Ou seja, liberamos dopamina, adrenalina e endorfina ao sair de uma experiência intensa de medo e apreensão com um final feliz e créditos no fim.
Outra razão pela qual buscamos o horror é o desejo por novas experiências. Observar histórias em que os personagens confrontam as partes mais sombrias de si mesmos, servindo como um estudo psicológico da condição humana. Além disso, a busca por emoções intensas está no cerne do interesse de um público específico: os jovens.
Em um artigo da Harvard Business Review, intitulado The Psychology Behind Why We Love (or Hate) Horror, são apontadas algumas conclusões interessantes sobre gênero e idade. Uma pesquisa descobriu que, em média, indivíduos mais jovens tendem a ser mais atraídos por esse gênero assustador. Os jovens estão em uma fase de vida propensa a desafiar seus limites, associados à curiosidade de experimentar novas emoções e vivências. É uma sensação parecida com uma montanha russa.
É também o que indica um estudo da Parrot Analytics de 2023, ao analisar aspectos da demanda geracional. Segundo o estudo, a demanda mundial sob o gênero de horror demonstra o forte engajamento dos Millenials, o que sugere que produtores, distribuidores e plataformas devem sempre pensar em estratégias de marketing eficientes, especialmente no ambiente digital.
A "RENOVAÇÃO" DO GÊNERO
Se há um gênero narrativo que mais se apoia em fórmulas consagradas, esse é o terror. Não tem erro: jovens em uma cabana isolada, exorcismos, jogos proibidos, freiras sinistras, monstros espaciais, zumbis e espíritos malignos sempre funcionam. Contudo, o gênero tem passado por novas fases, buscando recriar maneiras de provocar medo. Após uma fase de violência explícita popularizada por Jogos Mortais e seus sucessores, a onda do polêmico pós-horror trouxe o desconforto psicológico como resposta, impactando tanto o público quanto a crítica.
Em vez do gore e do sangue, o refresh veio por sensações. Foi nesse contexto que surgiu o fenômeno chamado A24 e os “novos clássicos” como A Bruxa. E como nesse mundo nada se cria, mas tudo se copia, ou se recria, uma repaginada onda do terror psicológico pegou, criando uma perspectiva de renovação, ousadia e conexão com o público jovem.
UM OLHAR DE NEGÓCIOS
O que não é novidade para o mercado é que a nova onda do terror é uma realidade. No maior mercado mundial, nos Estados Unidos o gênero aparece em quarto daqueles com maior popularidade de engajamento e procura, sendo o maior mercado para o gênero no mundo, segundo a Parrot Analytics. Em outro estudo realizado pela Statista, o gênero aparece em quinto lugar. Não é de espantar que o surgimento de novos fenômenos de produção venha exatamente desse território, como é o caso da A24 e da Blumhouse.
Segundo dados da Nielsen, um levantamento realizado em 2023 apontou que havia cerca de 1,1 milhão de títulos exclusivos de terror disponíveis nas plataformas de streaming. De acordo com a FlixPatrol, a série The Fall of the House of Usher, da Netflix, se destacou em 2023, acumulando 223 milhões de horas assistidas. No entanto, The Walking Dead continua sendo a série de terror mais vista de todos os tempos, considerando o total de horas assistidas ao longo de todas as suas temporadas, com destaque para a 11ª temporada, que sozinha somou 218 milhões de horas assistidas em 2010.
No ano passado os 55 filmes de terror lançados representaram 10% de um total de quase U$ 9Bilhões no mercado americano. No entanto, os filmes de terror não precisam atingir bilheterias de grande sucesso para obter lucro. O filme de terror com maior receita em 2023 foi Five Nights at Freddy’s, da Blumhouse, arrecadando aproximadamente US$ 300 milhões mundialmente, com um orçamento de produção de “apenas” US$ 36 milhões, alcançando um ROI de 8,3. Mesmo considerando o investimento em marketing, o retorno sobre o investimento (ROI) permanece muito elevado.
A explicação não é nenhuma "rocket science". Os baixos custos são uma característica do formato do terror, aliado a uma estratégia financeira inteligente. O gênero prioriza o conceito e a atmosfera em detrimento de efeitos visuais elaborados ou talentos muito conhecidos. Quem assiste a esses filmes de baixo custo? A resposta está na singularidade do fandom de terror. Não se trata de grandes investimentos, mas de execução.
Ao examinar o ROI médio por gênero, os filmes de terror se destacam como um outlier significativo, com uma média de retorno de 173% sobre os custos de produção, sendo o gênero mais eficiente da indústria, segundo dados do The Movie Dataset.
Dos 50 filmes mais lucrativos da história do cinema, 16 são filmes de terror - a maioria de qualquer gênero. A Bruxa de Blair e Atividade Paranormal, ambos clássicos do terror, possuem a maior porcentagem de ROI de todos os filmes da história do cinema. O resultado não poderia ser outro.
De acordo com um estudo do American Film Market, a imagem favorável das estatísticas de lucratividade, o terror está se tornando um gênero produzido com muito mais frequência, e essa tendência está longe de terminar.
O BRASIL & O TERROR
No Brasil, A Freira, do universo Invocação do Mal, da New Line Cinema e dirigido por James Wan, alcançou a impressionante marca de R$ 63 milhões nas bilheterias, tornando-se o filme de terror de maior arrecadação na história do país. Além de liderar o ranking das maiores bilheterias do gênero, a produção certamente foi um sucesso em outras janelas, como TV aberta, Pay TV, Streaming e TVOD. (infelizmente não temos esse dado)
No ano de 2023, somando a bilheteria brasileira de todos os filmes do gênero e seus derivados, calcula-se um aproximado de R$ 300 milhões de renda total, o que representa quase três vezes mais do que o cinema nacional arrecadou em sua totalidade no mesmo período.
Para provar que a demanda no Brasil é relevante, a Parrot Analtics apresentou no mês passado um estudo de caso sobre o comportamento do gênero no Brasil. E sim, segundo a metodologia aplicada da empresa, existe mais demanda do que oferta, o que sugere mercado para consumo. A média de demanda sobre o gênero vem apresentando nos últimos quatro anos índices que chamam atenção, corroborando com a tendência mundial.
Ao analisarmos também a tipologia do gênero, em um período de dois anos, o brasileiro vem se envolvendo mais com monstros, apocalipse e demônios. Certamente acompanhando os principais fenômenos mundiais de series como The Walking Dead, Stranger Things e algumas dezenas de filmes sobre exorcismos.
OPORTUNIDADE "WHITESPACE"
Quando falamos da produção nacional com relação ao gênero, existe um “gap” significativo sobre demanda e o volume de series e filmes brasileiros. Se por um lado podemos analisar uma série de barreiras para aderência ao conteúdo local, por outro é possível ver oportunidade. Em outra análise da Parrot Analytics, considerando apenas os 20 mercados que mais consomem o gênero, o Brasil é o quinto mercado com o maior patamar de demanda ao redor do mundo (considerando o período de Janeiro a Junho 2024), mas dentre os 20 principais mercados, ele está apenas em 16º no volume de produções locais.
Por que a produção nacional não aproveita essa tendência?
Eu mesmo questionei muitos executivos importantes do mercado sobre isso e ouvi respostas como: 'O Brasil não sabe fazer terror', 'O terror não faz parte da tradição audiovisual brasileira' ou 'O público brasileiro não compra a ideia de um ator de novela fazendo terror'. Essas análises, embora generalistas, comerciais e televisivas, refletem uma percepção comum. No entanto, há uma cena de cinema independente de terror no Brasil, com produções premiadas internacionalmente, além do legado de José Mojica Marins, nosso icônico Zé do Caixão. A discussão ganha relevância quando consideramos que, embora essas justificativas tenham sua validade, elas não deveriam ser vistas como barreiras ou impeditivos para o desenvolvimento do gênero em escala comercial
Diante de uma demanda tão evidente em uma indústria tão globalizada, importar know-how nesse contexto não parece algo absurdo, mas sim uma estratégia válida para acelerar o aprendizado e ocupar esse “white space” de oportunidade.
E é ótimo ver isso acontecendo. É o caso da recente produção da Lupa Filmes, Abraço De Mãe, que traz a atriz Marjorie Estiano como protagonista. Foi com essa visão que os produtores André Pereira e Mariana Muniz trouxeram o argentino Cristian Ponce para dirigir o longa. Ponce comandou o suspense de horror cósmico A História do Oculto, que se destacou entre entusiastas do gênero na Netflix. A produtora, inclusive, parece que entendeu o recado depois de ótimo longa de terror O Rastro.
A oportunidade está exatamente onde existe demanda e poucos competidores.
Mercados que compartilham semelhanças com a escola de dramaturgia televisiva brasileira, como o melodrama, têm conseguido assimilar essas mudanças com relativa rapidez. É o caso de países como Espanha, México e Argentina, que têm se destacado com produções cinematográficas e televisivas recentes, cravando nomes como o consagrado Guillermo Del Toro, Demián Rugna, J.A. Bayona, entre outros.
FOCO NO PÚBLICO
De fato, na outra ponta está um consumidor com referências afiadas. No mesmo estudo de caso da Parrot Analytics, também se comprovou que seguimos a tendência mundial. Homens de 15 a 41 anos são aqueles que mais se envolvem com o gênero no Brasil, com uma amplitude significativa entre o novo e o clássico que o gênero propõe.
É cada vez mais importante que o produtor veja o consumidor como parte integrante de sua ferramenta criativa, o que não diminui seu propósito autoral. Especialmente ao se comunicar com o público jovem, pensar no elenco, nas referências e no comportamento do consumidor tornou-se uma ciência indispensável, ainda mais quando acompanhada de uma boa estratégia de marketing. A Bruxa de Blair é um exemplo tão emblemático, que deveria servir como referência para quem deseja abraçar o gênero do terror.
No Brasil, a distribuidora Diamond tem feito esse trabalho muito bem, transformando o filme australiano Fale Comigo em um case de sucesso, envolvendo não apenas os fãs de terror, mas também a comunidade pop. Bingo! Encontrar o elo entre produção, atuação e público parece ser uma questão de tempo.
A série Desalma (Globo), assim como O Vale dos Esquecidos (HBO), foi uma excelente tentativa, trazendo quase todos os elementos clássicos do gênero, e do marketing. O que faltou? Na minha humilde opinião, nada. O que precisamos são mais produções, em um processo constante de aprendizado e experimentação, tentativa e erro.
Infelizmente, no atual cenário de aversão ao risco, especialmente no mercado de TV e Streaming, não se tem dado o luxuoso espaço para uma varíavel chave, tempo. Será necessário enfrentar muitos "fracassos" até que surja um verdadeiro sucesso.
Opinião: Às vezes me parece haver um certo preconceito por parte dos tomadores de decisão em relação ao gênero. Considerando os dados disponíveis de demanda e o baixo risco relativo, isso seria um equívoco estratégico — mas como não posso provar, deixamos essa discussão para o bar.
CONCLUSÃO
Como visto, o ser humano sente prazer em sentir susto e sua relação com o genêro é profunda. Há quem não goste, no entanto, a demanda dos que gostam já deixou de ser nicho, é consumo de massa.
Uma excelente notícia para o mercado é que o gênero tem demonstrado sucesso consistente, especialmente com orçamentos reduzidos, tornando-se uma ótima alternativa em tempos de crise e alinhando-se à realidade brasileira. Essa combinação cria a equação ideal para uma indústria que busca continuamente por eficiência. Além disso, está mais do que comprovado que existe uma demanda relevante e crescente no Brasil, especialmente entre o público jovem, ávido por conteúdo que gere engajamento.
A má notícia é que o terror no Brasil, quando se trata de produções nacionais, ainda enfrenta preconceitos e encontra-se em um ciclo de aprendizado, em um mercado brutalmente conservador, sem paciência para baixa audiência. Incorporar, cocriar e coproduzir com a indústria global, pode ser o caminho.
Acredito assim, que será do cinema independente, inspirado por referências, inserido em uma nova indústria global, com foco no engajamento do consumidor e comunidades, que surgirá produções capazes de romper a bolha comercial do gênero no Brasil. Ao encontrar uma fórmula que dialogue com o público brasileiro, o novo terror nacional poderá alcaçar sucesso para um público muito maior do que o inicialmente previsto — o fã do terror mundial.
POR: FELIPE HERZ BOCLIN
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